Um dos termos mais presentes no meio corporativo atualmente é “Transformação Digital”, mas vejo muita gente boa posicionando-se de forma equivocada em relação ao tema. Dividirei a minha argumentação da seguinte forma: O que é Transformação, o que é o “Digital”, contextualização, exemplos, equívocos e efeitos da Transformação Digital e os riscos de não fazê-la.
Transformação em si pode ser definida, de forma simplificada, como um processo intencional ou não, natural ou artificial, que modifica ou altera a forma de algo para um novo estado. Assim como a lagarta que se transforma em borboleta, num processo natural, uma transformação deve levar para uma forma completamente diferente da original, sem reversão. Tratando-se de negócios, quando se fala em transformação estamos falando de mudança do Modelo de Negócios – ruptura com o modelo vigente.
Inovação é outro termo comumente associado a Transformação, contudo, existem tipos distintos de inovação. As inovações mais comuns são incrementais, são melhorias / evoluções do que já existe, não causam transformação. Processos de transformação estão relacionados a inovação disruptiva, responsável por quebrar o status quo, interrompendo e finalizando um ciclo.
A complexidade do processo de transformação em negócios está justamente na dificuldade em se ter clareza de ideias, desenvolver a visão de futuro do que o mercado precisa, em linha com a missão, propósito e os valores da empresa. Agir no timing certo, possuir profissionais qualificados e contar com o engajamento de toda a empresa neste desafio.
Já o termo Digital, num contexto de tecnologia, é a forma de representar números em uma base binária (0’s e 1’s), resultante do somatório de exponenciais de base 2. Na prática, são todas as tecnologias e soluções que não usam tecnologia analógica, mas sim a representação digital para armazenar e processar dados.
A adoção do uso de telefones celulares em larga escala no início dos anos 2000 foi o movimento precursor da mudança de comportamento do público consumidor de forma global. A evolução tecnológica de processamento, tamanho e redução dos preços dos componentes eletrônicos culminou na criação dos Smartphones. E os Smartphones, seus sistemas operacionais e a vasta oferta de aplicativos têm alterado drasticamente os hábitos das pessoas. Trouxe grande poder de processamento para os bolsos e mãos do cidadão comum, em todo e qualquer lugar, 24h por dia.
"A adoção do uso de telefones celulares em larga escala no início dos anos 2000 foi o movimento precursor da mudança de comportamento do público consumidor de forma global. "
O primeiro impacto trazido pela evolução dos smartphones foi a queda acentuada nas vendas de computadores pessoais, diminuição das linhas fixas e a expansão brusca do uso de internet por todo tipo de público e usuários. A última década foi marcada pelo surgimento e crescimento meteórico das redes sociais, interação das pessoas entre si e com as empresas, Web 2.0.
A conjunção das tecnologias digitais (replicáveis e sem perdas, como copiar e colar arquivos sem perda de qualidade, infinitas vezes), o crescimento da capacidade do processamento e disponibilidade de armazenamento em nuvem propiciam a criação de dados em escala exponencial, numa proporção nunca vista. Os mercados de nicho são potencializados, como descrito por Chris Anderson (Calda Longa - https://pt.wikipedia.org/wiki/Cauda_longa ) e todo internauta tem voz. As mídias tradicionais de massa perdem cada vez mais espaço e importância, tudo está mudando e muito rápido.
O contexto atual, tecnológico, comportamental e de escala tem proporcionado um boom de startups mundo afora, oferecendo soluções inovadoras, disruptivas, para problemas conhecidos da sociedade e quebrando mercados tradicionais. Airbnb, Netflix, Uber, Spotfy e uma infinidade de outros são exemplos de plataformas digitais que utilizam a interação entre pessoas (escala exponencial), e resolvem de forma mais eficiente e conveniente necessidades do mundo real. Mas note, essas empresas nasceram digitais, não passaram por transformação digital, este é um erro comum de percepção das pessoas em geral.
Para mim, o exemplo mais icônico de Transformação Digital bem-sucedida é o da Enciclopédia Britannica. Aqueles que já têm alguns cabelos brancos vão lembrar do surgimento dos “Kits Multimídia” para desktops. Na década de 90 surgiram as enciclopédias digitais oferecidas em CD-ROM como parte dos kits, a qualidade era muito boa e a experiência multimídia (imagens, sons e vídeos) novidade pra época, tornava o seu uso realmente interessante. A venda de enciclopédias impressas começou a sofrer declínio, e era evidente que o cenário não voltaria mais a ser o que era. Além da experiência enriquecedora, o custo da concorrência era baixíssimo, como eu disse antes, informação armazenada em formato digital é totalmente reprodutível, sem perdas, o custo dos CDs era irrisório quando produzido em larga escala, e a logística de entrega simples com volume e peso pequenos. Por outro lado, imagine o custo de produção de 10 volumes de uma enciclopédia Britannica e o custo da logística para distribuição? O cenário era crítico, eles precisavam se mexer.
Entendendo que o principal valor entregue aos clientes era Informação, o caminho natural seria digitalizar tudo e lutar por mercado numa guerra sangrenta com os novos concorrentes por preço e sem nenhuma diferenciação. Porém, revisaram a estratégia de marketing, reforçaram o uso da marca – tradicional e forte, redefiniram o público alvo, e criaram uma plataforma online de ensino e interação para estudantes filhos de pais preocupados em oferecer conteúdo Premium para enriquecer os estudos. O modelo de negócios deixou de ser baseado em vender livros de capa dura e passou a ser venda de assinatura de serviços online. Neste novo modelo a quantidade de assinaturas vendidas tem custo adicional marginal, entrega imediata via internet, atualização de conteúdo constante, interação e a satisfação dos clientes foi enorme. Há algum tempo a Britannica interrompeu a produção de volumes impressos e, naquele momento, as vendas de volumes físicos representava apenas 1% do faturamento da empresa, a Britannica nunca foi tão lucrativa. Claro, negócios digitais quando dão certo e escalam têm um crescimento exponencial, muito forte. http://britannica.com.br/
Um outro exemplo, mas com final infeliz, é o da Kodak, que foi ícone no ramo de fotografia por muitos anos e hoje luta para se reinventar diante da nova realidade. Chega a ser irônico que uma das primeiras patentes de células sensíveis capazes de transformar a luz em informação digital (princípio das câmeras fotográficas digitais) tenha sido registrada pela própria Kodak. Eles perderam o timing de entender que a tecnologia que estava surgindo iria transformar a indústria da fotografia (foto e vídeo), originalmente pautada em película fotográfica. Talvez tenham errado em entender o real valor entregue aos seus clientes, que de fato não era a fotografia revelada em si, mas a experiência de mostra-las pros familiares, pros amigos ou pros inimigos. Talvez a Kodak pudesse ter sido um Facebook, Instagram, Pinterest...
A Transformação Digital está relacionada ao Modelo de Negócio de empresas já estabelecidas, a tecnologia digital é o meio, não o fim. É difícil afirmar que todas as áreas, negócios e indústrias correm risco de serem descontinuados pela disrupção trazida por um novo player, mas certamente a atenção e investimento neste tipo de inovação deve ser parte da estratégia de todas as empresas, até mesmo das que nasceram digitais. As novas tecnologias estão surgindo num ritmo intenso e num piscar de olhos tudo pode mudar, de novo.
"A Transformação Digital está relacionada ao Modelo de Negócio de empresas já estabelecidas, a tecnologia digital é o meio, não o fim."
Um outro aspecto crucial para o sucesso da Transformação Digital é a atualização constante e o engajamento dos funcionários. Existe uma lacuna gigantesca em relação ao conhecimento dos profissionais do presente e as necessidades do trabalho do futuro, principalmente em relação ao real entendimento deste momento e ao repertório tecnológico. O trabalho cada vez mais colaborativo, projetos ágeis, informações compartilhadas, constante aprendizado, foco no propósito da empresa e no desafio da busca constante pela melhor solução, são as principais características dos profissionais do futuro (quase presente).
Num futuro muito próximo não existirão postos de trabalho para quem não entende as tecnologias disponíveis. O alto grau de automação e difusão da Inteligência Artificial vão aniquilar os postos de trabalho repetitivos e de baixo valor. Saber fazer as perguntas certas será fundamental para a sobrevivência dos negócios.
O entendimento do Digital, a construção de uma cultura organizacional acolhedora à inovação, a adoção de ferramentas e metodologias e o engajamento dos profissionais são os principais desafios das empresas em concretizar esta passagem intencional de transformação digital. Investimentos em iniciativas de inovação serão necessários, e grande parte destes darão em nada, afinal, para criar algo novo e útil experimentos serão necessários, se é novo não há referencial, erros e aprendizagem farão parte do processo. Boards, conselhos administrativos e C-levels precisarão entender isso.
As empresas que perderem o timing deste momento de mudança, infelizmente, não estarão entre nós no futuro, e os profissionais que não se atualizarem terão grande dificuldade de realocação num mercado de trabalho complexo e automatizado.
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